Um combate silencioso
Ontem, já nem sei porquê, veio a lume a figura de Carolina Michaëlis. Alguem me dizia que ela tinha sido professora de liceu, pois há um liceu no Porto com o nome dela. Eu duvidava, pois sempre a conheci como a primeira mulher que foi professora universitária em Portugal. Resolvi ir investigar. E fiquei espantada. A realidade ultrapassa a ficção. É espantosa a força da natureza. Quando se quer realmente, podemos ultrapassar os obstáculos do meio circundante. Por ser mulher, ela não pode frequentar uma universidade, como aluna. Mas nunca deixou de prosseguir os seus estudos, fazendo-o sozinha, chegou a ultrapassar os estudantes que frequentavam as aulas. Fez-me lembrar, aqui há uns anos, o Prof. Campos Ferreira teve curiosidade de ver quem era o aluno que tinha tido a melhor nota em Análise Matemática I ou II. E quem era o seu professor. Chegou à conclusão que este aluno quase não ia às aulas, estudava sozinho.
Tudo isto são lições de vida. Por um lado, o êxito dum aluno nem sempre depende do professor. Depende mais do próprio aluno. Se calhar há certas práticas pedagógicas que até afastam os melhores alunos. Por outro lado, se nós às vezes nos deixamos abater por certas barreiras que o poder vigente coloca à nossa frente, vemos agora que outros conseguiram ultrapassar barreiras muito maiores. Isso dá-nos um certo alento para prosseguir o nosso próprio caminho, independentemente dos poderes instituídos, que nem sempre são os melhores.
Voltando a Carolina Michaëlis, vale a pena reler a sua história.
Do Jornal de Letras, Artes e Ideias, de 04 de Abril de 2001, aqui vai:
Carolina nasceu a 15 de Março de 1851, há 150 anos, na cidade de Berlim. Era filha do doutor Gustavo Michaëlis, professor de taquigrafia, ortografia e fonética. Nesse ano, ainda se sentiam fortemente os ecos da "primavera dos povos" e da revolta berlinense do "ano louco" de 1848 ("das toll jahr"). Iniciava-se o ocaso dos Habsburgos e o sucesso dos Hohenzollern na sempre intrincada trama alemã. Foi nesse mesmo tempo que Bismarck deu um passo decisivo na sua carreira política, passando a representar a Prússia junto da Dieta de Francoforte. Profetizava ele então que a unidade alemã se faria sob a influência do Brandeburgo, contra qualquer conciliação com a Áustria, mas também contra as posições mais conservadoras da aristocracia rural, donde ele afinal provinha... Por ironia, o mesmo Bismarck, que troçava então das ilusões dos entusiastas da Dieta liberal, seria exactamente aquele que iria realizar o primeiro dos princípios por eles defendidos. O jovem e prometedor político sonhava com uma guerra fulminante contra a Áustria, que permitisse aos alemães destruir o jogo e lançar novas cartas, sob a influência decisiva de Berlim. "O meu dever não me permite sentir qualquer simpatia ou antipatia pessoal pelas potências ou pessoas estrangeiras"... O resto da história conhece-se. Passo a passo, em especial com a vitória de Sadova sobre os austríacos, mas sem qualquer humilhação imposta aos Habsburgos, o Senhor de Schoenhausen levaria o rei da Prússia até à galeria dos espelhos de Versalhes, tornando-o imperador da Alemanha unificada.
Esta caminhada imperial não tinha, por certo, as simpatias da família Michaëlis - como não teve da intelectualidade berlinense, muito desconfiada e receosa das proclamações do sangue e do ferro, tão repetidas pelo futuro chanceler. Por isso, Mommsen, o escutadíssimo mestre da história romana, proclamava: "Evitai, senhores, evitai que este Estado, até hoje pátria das armas e do espírito, se torne, no futuro, unicamente pátria de armas". Os debates eram acesos. A opinião pública liberal dos professores, dos advogados e dos comerciantes desconfiava e temia - poderia estar na forja o domínio reaccionário dos ultraconservadores, inimigos da cultura e da civilização.
Entre 1858 e 1867, exactamente no período de afirmação do novo poder, a jovem Carolina faz os seus estudos elementares e secundários, marcando-a especialmente a influência do filólogo Eduardo Maetzner, que descobrirá as qualidades extraordinárias da aluna. Depois, a filha dos Michaëlis passará a trabalhar com Carlos Goldbeck, a partir de 1865, em regime livre, no estudo de línguas e literaturas clássicas, românicas, eslavas e semíticas. Datam de 1868 os seus primeiros ensaios literários, havendo a partir de então intensa actividade epistolar com os principais romanistas do seu tempo. Os mestres são os primeiros a reconhecer as qualidades intelectuais excepcionais de Carolina, lamentando profundamente o facto de ela não poder seguir os estudos universitários, por serem na altura vedados a mulheres. Isso não constitui, porém, entrave a que a jovem prossiga obstinadamente, como autodidacta, estudos nas áreas da sua eleição, editando, designadamente uma colectânea de poesia italiana antiga e moderna (1871). É assim que obtém, em 1872, por distinção, a situação de intérprete oficial ajuramentada em línguas hispânicas, nos domínios políticos, civis e criminais. Essa nomeação não vai, porém, limitar o prosseguimento de estudos nas línguas românicas, o que permitirá a Gaston Paris, prestigiado romanista, perguntar admirado: "Onde aprendeu, com apenas dezanove anos, o que nós, depois de doze ou quinze anos de trabalho, ainda não sabemos?" São de 1872, aliás, os primeiros contactos documentados com intelectuais portugueses, em especial com Adolfo Coelho, Teófilo Braga e Joaquim de Vasconcelos. As afinidades electivas com Joaquim de Vasconcelos (1849-1936), figura maior da cultura portuguesa, autêntico fundador da moderna historiografia da arte em Portugal, são evidentes e levarão a que ambos se casem em Berlim (1876), vindo Carolina Michaëlis pela primeira vez a Portugal na sequência de um périplo europeu com o marido por Itália, Áustria, Suíça e Dinamarca... Recorde-se que Vasconcelos estudara em Berlim na década de sessenta, vendo interrompidos os seus estudos quando rebentou a guerra franco-prussiana. Entretanto, já muito prestigiada em Espanha, a jovem Carolina Michaëlis de Vasconcelos depressa se integra nos meios mais cultos e avançados portugueses. Oliveira Martins vivia no Porto, cedo se relacionando com o casal Carolina e Joaquim. Antero de Quental fixar-se-á na década de oitenta em Vila do Conde, próximo dos seus amigos da cidade do Porto, onde se reconstituíra de algum modo e por algum tempo nas Águas Férreas o velho cenáculo da geração setentista.
De Carolina Michaëlis dirá Menendez y Pelayo que foi a "fada que a Alemanha enviou a Portugal", reforçando o que já era muito evidente para a geração nova: o reconhecimento da importância fundamental da intelectualidade alemã na renovação das ideias na Europa, com especial referência para os discípulos de Hegel e de Schopenhauer ou para os grandes filósofos, poetas e historiadores que lançaram os ideais de liberdade e de justiça em 1830 e em 1848. Carolina Michaëlis de Vasconcelos não perde tempo. Prossegue a sua investigação atenta, rigorosa e minuciosa sobre a nossa história, literatura, língua, filologia e etnografia - tendo a seu lado outro incansável investigador que, nesse tempo, se dedica a estudar o estilo românico e as suas raízes populares. Joaquim de Vasconcelos constitui o influente Centro Artístico Portuense e a revista "Arte Portuguesa" (1881-1883) e participa no lançamento do ensino técnico e artístico, no desenvolvimento do desenho industrial e na criação do Museu Industrial do Porto. Os séculos XV e XVI entusiasmam o casal. Enquanto Carolina estuda a evolução da língua, Joaquim interroga-se sobre as raízes flamengas da pintura portuguesa no século de ouro. A arte e a língua completavam-se. Tudo estava em saber qual o melhor modo de interpretar e de chegar à identidade do ser português.
O conhecimento da realidade portuguesa por uma alemã enche todos de espanto. Sendo mulher afirma, ainda, com grande sensibilidade, sobriedade, espírito científico e exigência a importância da educação e do conhecimento. Carolina torna-se em 1877 sócia do Instituto de Línguas Vivas de Berlim, enquanto é eleita para muitas outras sociedades científicas de grande prestígio. É impressionante a lista dos trabalhos que publica – primeiro em matéria linguística, depois no âmbito das história e da crítica literária. Lembremos os estudos sobre o "Cancioneiro da Ajuda" e o glossário imprescindível que preparou, com enorme cuidado. A literatura portuguesa é um inesgotável campo para a sua investigação: as origens da poesia peninsular, divagações filológicas, literárias e históricas sobre a Saudade portuguesa, a propósito de Inês de Castro, o teatro de Gil Vicente, a notícia do achamento de Pero Vaz de Caminha, o romanceiro peninsular, Camões e Sá de Miranda, Bernardim Ribeiro e Cristóvão Falcão, Uriel Costa. Sobre cada um podemos encontrar ainda hoje pertinentes investigações de uma clareza essencial e de uma serena erudição (sem excessos nem ostentações) que nos espanta. A Universidade de Friburgo reconhece o labor científico de primeira qualidade de Carolina Michaëlis e concede-lhe o grau de Doutor honoris causa. O que a jovem não conseguira em Berlim conseguia-o agora, por via honorífica, mas com indiscutível sentido de justiça. Em 1901, D. Carlos concede-lhe o oficialato da Ordem de Santiago da Espada, em preito de homenagem ao labor científico, que todos continuavam a considerar como de qualidade e interesse excepcionais.
Na rua da Cedofeita, na cidade hospitaleira do Porto, a casa dos Vasconcelos tornara-se um centro onde se reuniam os mais influentes intelectuais do seu tempo, empenhados na vida cívica e no lançamento das bases de um progresso baseado na cultura - em bom rigor, então quase incompreendido. Em 1911, logo após a implantação da República, é nomeada professora da nova Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, considerando os enormes serviços prestados à cultura portuguesa, cargo que não aceitará por motivos da vida familiar. No entanto, aceita o encargo pedagógico e científico, exercendo-o na Universidade de Coimbra. Aí, receberá, aliás, em 1916, o doutoramento honoris causa, acto solene de reconhecimento pela obra tão rica e relevante de Carolina Michaëlis. Em 1923 receberá, aliás, idêntica honra na Universidade de Hamburgo.
Mulher e investigadora, cultora da sensibilidade e do rigor - eis que ficava demonstrada a importância da íntima ligação entre a vida pessoal e a vocação científica. E se lermos a sua obra, muito diversificada, facilmente encontramos uma procura incansável pela identidade portuguesa, pelo espírito próprio da nossa cultura, em articulação sempre com a procura de um sentido universal, bem evidente no encontrar de influências europeias - demonstrando, com muita clareza, que a nossa cultura sempre se enriqueceu quando se abriu ao exterior e a outras culturas e sempre se empobreceu quando se fechou ou se deixou ficar por qualquer inércia conservadora. Carolina cultivou sempre um espírito desperto e liberal, aberto e sensível, sempre em busca do que ia para além do superficial e do imediato. Olhando-a com olhos de hoje, não passa despercebida uma nítida intenção emancipadora, de quem nunca deixou de assumir a sua qualidade de mulher e de quem considerou sempre, como naturalíssimo, que liberdade e igualdade fossem faces da mesmo espelho, como a igualdade e a diferença, e nunca realidades antagónicas. Sem muito mais considerações, o exemplo vale por si - sem necessidade de adjectivar ou de tornar enfático. Carolina Michaëlis fez até morrer (16.11.1925) aquilo de que gostava e que era a sua vocação, sem esquecer, porém, que era um exemplo singular, que, no entanto, sempre desejou que deixasse de ser excepcional. Este foi o seu combate sereno. (Guilherme d’Oliveira Martins)
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