Carta à Senhora Ministra da Ciência e do Ensino Superior
Senhora Ministra da Ciência e do Ensino Superior
Acordei ontem com a rádio a noticiar que haviam sido introduzidas alterações
no financiamento destinado à ciência, que “discrimina positivamente a
Excelência , a Produção Científica, a Transferência de Tecnologia, a
Formação de Recursos Humanos Qualificados e o Emprego Científico”, tanto
quanto nos é dado a ler no documento encontrado no site do MCES. Espero ser
surpreendida, também positivamente, pelo que aí vem, já que o meu testemunho
em relação à situação actual é bem pouco abonatório relativamente à política
seguida neste sector.
Sou professora no Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e investigadora num centro
de pesquisa que aguarda a possibilidade de se candidatar ao financiamento
para novas unidades de investigação por parte da Fundação para a Ciência e a
Tecnologia (FCT), encerrado ao longo dos últimos anos. Ontem, no mesmo dia
em que despertei com o foguetório em torno do «novo» sistema de
financiamento para a ciência, enviei um ofício ao presidente da FCT, Prof.
Fernando Ramôa Ribeiro, a devolver os 200 euros concedidos para uma
deslocação a Marselha, onde iria coordenar o painel “Conflicts and
Encounters around European Frontiers” do Colóquio «Among Others Conflict
and Encounter in European and Mediterranean Societies», promovido por uma
das mais importantes sociedades europeias da área da Antropologia, a
Societé Internationale d’Ethnologie et de Folklore (SIEF) e que tem lugar
entre 26 e 30 de Abril corrente. Manifestamente sub-financiada para esta
deslocação com a atribuição de duzentos euros pouco mais de 1/5 da quantia
solicitada e sem a qual não poderia ir fui forçada a informar os colegas
da organização da minha impossibilidade de estar presente.
Não apresentar a comunicação que preparava ainda era o mal menor , neste
caso. É a terceira vez, nos últimos anos, que a FCT inviabiliza a minha
deslocação a encontros internacionais, devido à escassez dos financiamentos
atribuídos. Num dos casos, num Congresso de Antropologia realizado em
Santiago do Chile, uma colega teve de apresentar a minha comunicação; no
segundo caso, no Brasil, o texto, que foi enviado já escrito à FCT e à
organização, ficou por apresentar. Neste último caso seríamos três
elementos de uma equipa de investigação a apresentar comunicações, mas a
quantia atribuída não dava tampouco para um de nós poder ir e apresentar os
textos de todos os outros.
O caso presente tem outras implicações, já que se tratava, além da
apresentação de uma comunicação, de compromissos assumidos quanto à
coordenação de uma mesa, para a qual fui convidada, com um colega norueguês,
Anders Gustavsson, devido ao reconhecimento do meu trabalho em torno das
fronteiras e construções de identidades de orla. Ou seja, a atribuição da
coordenação de um painel num colóquio de uma tão importante organização
científica internacional, não parece ser suficiente, por parte da FCT, para
considerar que esta projecção internacional da antropologia portuguesa
mereça ser alvo de um financiamento que permita assegurá-la. É necessário
frisar que todas estas deslocações são feitas pelos custos mínimos: viagem
aérea mais barata e hotel até 3 estrelas.
Quando tão enfática é a política ministerial no que concerne à promoção da
excelência dos investigadores portugueses, estranha-se esta prática
reiterada de corte de financiamentos e de sub-financiamento, ressentida por
muitos de nós, no que respeita ao FACC (Fundo de Apoio à Comunidade
Científica). É também intrigante que seja reconhecido fora de Portugal o
trabalho de uma investigadora que viu recusado há cerca de um ano por parte
da FCT o financiamento para um projecto de investigação nesta mesma área,
em que era investigadora principal, num processo em que, ao contrário do que
sucedia pelas normas anteriormente fixadas, não houve apresentações públicas
que, a par da existência de regras claras e da constituição de um painel de
avaliação competente que não contesto- , conferem transparência a estes
concursos. Será que as ciências sociais, e nomeadamente a
antropologia, «esquecida» recentemente na lista das áreas científicas no
Programa Lusitânia, ficam fora dessa propalada promoção da excelência?
Como desde há vários anos não é aberto concurso por parte dessa Fundação
para o Financiamento de novas unidades de investigação, não é possível a
muitos de nós, ligados a centros de pesquisa à espera desse concurso, dispor
de fundos alternativos, através dos quais fosse possível financiar as
deslocações. Mais, a descapitalização das universidades a que a política
governamental vem procedendo, impede que sejam também essas entidades a
complementarem os fundos necessários para este tipo de deslocações. No caso
da faculdade onde desempenho funções, os cortes drásticos de financiamento
levam a que esta instituição só possa financiar a inscrição aos
investigadores que se deslocam a congressos e colóquios de importância
reconhecida. Cercados pelo lado da Universidade, que está a contas com o
sufoco de um orçamento que a impede de expandir, de recrutar jovens
excelentes que todos os anos forma como docentes e investigadores, de
proporcionar condições de trabalho aos que aí têm aulas e fazem
investigação; cerceados pela FCT da possibilidade de mostrar o que vamos
pesquisando, se não mesmo dos fundos para a investigação; limitados
pelas «áreas estratégicas» que impediram que até agora, e desde há dois
anos, não tenha aberto período de concurso para projectos em todas as áreas
assim se vislumbram muitos investigadores, em alguns casos forçados a uma
precaridade laboral que se arrasta bem além do doutoramento ou de pós-
doutoramentos. No caso que relato, não basta dirigir à FCT as críticas, já
que as decisões são mais vastas e nelas está envolvido todo o ministério que
dirige neste momento. Não poderei ir a Marselha não só porque a FCT sub-
financia, mas porque o MCES corta nos financiamentos das universidades e
aposta em «áreas estratégicas» que mantêm as ciências sociais arredadas, ou
que as chama principalmente a acorrerem a investigações aplicadas, daí que
lhe faça chegar este meu protesto, que tornarei também público.
Os investigadores, entre o terreno e o laboratório, a biblioteca e o
gabinete, são pouco visíveis. Se tudo correr bem, só se ouve falar deles
quando agraciados por prémios que reconhecem o mérito do seu trabalho. Sabe-
se pouco das condições em que trabalham, que têm conhecido uma deterioração
nos últimos anos. Ainda que sejam inúmeras as vezes em que à nossa própria
custa fazemos os nossos trabalhos de investigação e nos deslocamos a este
tipo de eventos, vai sendo aniquilada a nossa capacidade de, a par com os
cientistas de outros países, mostrar o que vamos produzindo. A situação por
mim vivida não é única, infelizmente. O colega norueguês que comigo
partilhava a coordenação do painel chegou a sugerir, via mail, que a SIEF
recorresse, também para mim, ao fundo destinado a apoiar investigadores de
países não comunitários, atendendo à impossibilidade que me foi criada em
Portugal, sugestão que evidentemente não aceitei.
É neste contexto que é lançado o programa ontem apresentado na comunicação
social. Com este envolvimento, resta-me cada vez menos confiança e revejo-me
cada vez mais como seguidora de São Tomé. De qualquer modo, gostaria de ser
informada sobre as possíveis alterações em torno das questões que lhe
levanto: reforço do FACC, data de abertura de concurso para projectos em
todas as áreas, candidaturas ao programa plurianual para novos centros de
investigação, reforço de fundos para as universidades, que estão sufocadas,
mesmo após terem procedido ao aumento de propinas.
Os meus cumprimentos
Lisboa, 14.4.2004
Paula Godinho
Faculdade de Ciencias Sociais e Humanas
Universidade Nova de Lisboa
Departamento de Antropologia
Av. Berna, 26 C - 1069-061 LISBOA
PORTUGAL
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