Mário Cesariny (1923 - 2006)
Poema podendo servir de posfácio
Ruas onde o perigo é evidente
braços verdes de práticas ocultas
cadáveres à tona de água
girassóis
e um corpo
um corpo para cortar as lâmpadas do dia
um corpo para descer uma paisagem de aves
para ir de manhã cedo e voltar muito tarde
rodeado de anões e de campos de lilases
um corpo para cobrir a tua ausência
como uma colcha
um talher
um perfume
isto ou o seu contrário, mas de certa maneira hiante
e com muita gente à volta a ver o que é
isto ou uma população de sessenta mil almas devorando almofadas escarlates a caminho do mar
e que chegam, ao crepúsculo,
encostadas aos submarinos
isto ou um torso desalojado de um verso
e cuja morte é o orgulho de todos
ó pálida cidade construída
como uma febre entre dois patamares!
vamos distribuir ao domicílio
terra para encher candelabros
leitos de fumo para amantes erectos
tabuinhas com palavras interditas
– uma mulher para este que está quase a perder o gosto à vida – tome lá –
dois netos para essa velha aí no fim da fila – não temos mais –
saquear o museu dar um diadema ao mundo e depois obrigar a repor no mesmo sítio
e para ti e para mim, assentes num espaço útil,
veneno para entornar nos olhos do gigante
isto ou um rosto um rosto solitário como barco em demanda de vento calmo para a noite
se nós somos areia que se filtre
a um vento débil entre arbustos pintados
se um propósito deve atingir a sua margem como as correntes da terra náufragos e tempestade
se o homem das pensões e das hospedarias levanta a sua fronte de cratera molhada
se na rua o sol brilha como nunca
se por um minuto
vale a pena
esperar
isto ou a alegria igual à simples forma de um pulso
aceso entre a folhagem das mais altas lâmpadas
isto ou a alegria dita o avião de cartas
entrada pela janela saída pelo telhado
ah mas então a pirâmide existe?
ah mas e então a pirâmide diz coisas?
então a pirâmide é o segredo de cada um com o mundo?
sim meu amor a pirâmide existe
a pirâmide diz muitíssimas coisas
a pirâmide é a arte de bailar em silêncio
e em todo o caso
há praças onde esculpir um lírio
zonas subtis de propagação do azul
gestos sem dono barcos sob as flores
uma canção para ouvir-te chegar
© 1957, Mário Cesariny, From: Manual de Prestidigitação, Publisher: Assírio & Alvim, Lisbon, 2005
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