75 dias de prisão por reclamar num restaurante.
Recebi isto por e-mail. Nada que me espante. Só para confirmar como cada vez estamos mais próximos do pior do terceiro mundo. A "independência" da "Justiça", a falta de segurança dos cidadãos, a impunidade a todos os níveis, a corrupção generalizada, tudo nos faz pensar que estamos num daqueles países asiáticos que dantes só se via nos filmes onde era perigoso ir, onde metiam droga na bagagem de passageiros inocentes e depois estes ficavam prisioneiros duma cadeia infernal de julgamentos fantoche e nunca mais conseguiam sair. Um pesadelo! Infelizmente, esta é a realidade portuguesa.
"Não, não é uma história inventada. Não, não é uma história do Sr. Valéry.
É uma história real, em Portugal, 33 anos depois do 25 de Abril.
Quando ouço com frequência algumas pessoas, que conhecem razoavelmente o que é o nosso país, afirmar que confiam na justiça, tenho-me muitas vezes questionado porque razão há-de ser a justiça diferente de tudo o resto em Portugal. Porque há-de a justiça ser diferente das autarquias, dos partidos, das universidades, das empresas, do futebol? Porque razão haveremos de confiar que a justiça é sempre exemplar, independente e sobretudo justa?
A história que vou contar não é uma história do Sr. Valéry, ou do Sr. Henry, ou mesmo do Sr. Juarroz, personagens absurdas, criadas pelo escritor Gonçalo M. Tavares. Também não é uma das parábolas/fábulas que eu escrevia há uns anos, quando tinha necessidade de contar histórias. Também não aconteceu num país distante da Ásia ou de África. A história que vou contar aconteceu, está a acontecer hoje em Portugal. Este aviso é importante porque penso que muitos de vós terão dificuldade
em acreditar nela. Eu teria. É uma história real, passada aqui, entre nós, 33 anos depois do 25 de Abril.
Eu não fui protagonista directo, mas acompanhei a história de muito perto e sei, por isso, exactamente o que se passou.
Divulgo-a porque a história me parece exemplar, pois sendo à primeira vista corriqueira, permite verificar como também a justiça pode ser usada, manipulada, mesmo em situações aparentemente sem grande importância. Pela sua vulgaridade pode ser um sinal claro de uma nova classe emergente em Portugal, não só de novos-ricos mas de novos-poderosos, que sabem que são impunes e que agem sabendo disso, e que, por isso, se dão ao luxo de até nas pequenas coisas controlarem o sistema. Estes
indícios fazem-nos interrogar como se passarão então as coisas, quando grandes interesses estarão em jogo?
1. Os acontecimentos
Uma pessoa das minhas relações, num jantar de grupo num restaurante em Matosinhos em Julho de 2005 – um desses restaurantes que oferecem tudo e mais alguma coisa por pouco dinheiro e que é frequentemente utilizado por grupos de estudantes adolescentes, precisamente por ser barato – foi muito mal servida e constatou ao longo de toda a refeição que muito do que se prometia não era cumprido e se destinava a enganar os consumidores. Mas, tratando-se de um jantar de despedida de
um elemento da equipa do centro de saúde onde trabalha, resolveu não dar importância à fraca qualidade do serviço, que era de alguma forma expectável, tendo em conta as características do restaurante. Só quando um empregado, durante as sobremesas, a tratou de uma forma indelicada, para não dizer malcriada – talvez como está habituado a tratar os adolescentes, que são a clientela habitual do restaurante – sentiu que era demais e pediu o livro de reclamações. Mas, mesmo depois de vários
elementos do grupo terem repetido esse pedido por diversas vezes, ninguém lhe trazia o livro, tentando, por conversa fiada ou através do simples cansaço que desistissem da reclamação. Esperaram mais de uma hora. E digo “esperaram” porque todo o grupo foi retido, depois de terminar o jantar e mesmo depois de já ter pago a conta – a determinada altura foi-lhes dito que só poderiam reclamar depois de pagar mas, mesmo depois de pagar, continuaram à espera do livro de reclamações que não aparecia. Tiveram por fim de chamar a PSP de Matosinhos e só quando os polícias apareceram, o livro foi finalmente apresentado e a reclamação foi feita.(1)
(1) A reclamação dizia (principais extractos): “Foi-nos servido rabada de boi, quando está anunciada picanha… Durante a sobremesa fomos advertidos de forma não muito simpática que não podíamos servirmo-nos de gelado… Quando solicitámos o livro às 22 horas, fizeram várias tentativas para nos dissuadir, e só às 23 horas é que nos foi dito que teria de estar presente a polícia. Restaurante não recomendado.” (Como se vê, a reclamação até é bastante condescendente e não especialmente crítica.)
Qual a sua surpresa quando muitos meses mais tarde, em Fevereiro de 2006, é notificada pelo tribunal – curiosamente em cima do prazo limite, o que a impediu de reagir com um processo por difamação – e sabe na sequência que a dona do restaurante, que não estava presente quando os acontecimentos ocorreram, tinha feito uma queixa crime por injúrias ao restaurante, contando uma história mirabolante
e argumentando que o barulho e os desacatos feitos, quando tal ocorreu, lhe tinham prejudicado o negócio. E a verdade é que tal caso seguiu para julgamento e a pessoa que tinha assinado a reclamação foi considerada arguida e mesmo proibida de sair do país até à data do julgamento!
Mas essa pessoa não se preocupou muito. De facto, por um lado a queixa era tão descabida e tão falsa, que parecia ser incapaz de convencer quem quer que fosse, por outro lado havia numerosas testemunhas – quase todo o corpo clínico e de enfermagem do centro saúde – que testemunhariam o que se tinha realmente passado e que assegurariam mesmo que a reclamação era colectiva e que apenas tinha sido assinada por um dos elementos, porque o formulário da reclamação a isso obrigava.
Por isso, talvez como muita gente ingénua deste país, pensou, ”Não há problemas, eu confio na justiça”.
2. O julgamento
Até que chegou o dia do julgamento e logo no início começou a observar alguns pormenores um pouco estranhos e que lhe deram um mau pressentimento, que veio a confirmar-se. A primeira coisa que a juíza fez foi perguntar-lhe num tom agressivo “se não quereria assumir as custas do tribunal e terminar o caso ali, pois assim continuaria inocente, e depois do julgamento não se sabia…”. Tal corresponderia, como é óbvio, a assumir a culpa. Disse que não, que tal proposta era inaceitável, pois limitara-se a exercer o direito de cidadania de fazer uma reclamação e não era ela a queixosa. Essa pergunta a ser feita deveria ser feita à parte que iniciou a acção. E mais uma vez afirmou que confiava na justiça.
A juíza ouviu as testemunhas da queixosa – curiosamente nenhuma das testemunhas de acusação apresentadas assistiu integralmente aos acontecimentos. É mesmo curioso que a dona do restaurante não tenha chamado a depor nenhum dos empregados de mesa que serviram a refeição e que assistiram a tudo. Porque seria? Havia um porteiro que relatou o que os colegas lhe teriam dito que se teria passado e que só teria assistido ao fim, quando chamado, e que confirmou a exaltação da cliente, mas
que inclusive, quando interrogado, chegou a afirmar que não conseguia confirmar se a pessoa em causa era aquela, pois não se lembrava. Havia um amigo da dona, que a substitui no restaurante na sua ausência, e que teria sido chamado também já no fim dos acontecimentos para propor à cliente resolver o assunto em vez de fazer a reclamação, utilizando o argumento xenófobo de que a senhora se entenderia com ele porque “ele era português, enquanto os todos os empregados eram brasileiros…”.
Depois a juíza ouviu a arguida, vários médicos e vários enfermeiros do centro de saúde, que tinham estado no grupo presente no jantar, e que confirmaram a versão da arguida. De acordo com os seus testemunhos tudo se passara com calma, limitando-se os presentes a pedir o livro de reclamações e a não sair enquanto o livro não foi apresentado. Foi testemunhado inclusive que alguns dos elementos do grupo, sentados na outra extremidade da mesa, só se aperceberam de que havia um problema quando perguntaram porque razão não podiam sair se já tinham pago, e quando foram informados que esperavam pelo livro para fazer uma reclamação. Frisaram mais de uma vez que a reclamação feita era colectiva, apesar de assinada apenas por uma pessoa. E só no fim a Dr.ª juíza se lembrou que também teria de ouvir a queixosa e lá mandou chamar a dona do restaurante, para relatar os acontecimentos. A queixosa também não tinha estado presente no restaurante naquele dia e não assistira a nada, relatando
portanto apenas o que supostamente os funcionários lhe teriam dito.
Terminou o julgamento e ficou-se à espera da sentença. Os maus pressentimentos foram-se aprofundando quando de vários quadrantes chegavam zunzuns de que a dona do restaurante era gente muito influente no concelho. Essas vozes aconselhavam “a ter muito cuidado”, pois era muito próxima de figuras políticas do partido no poder, ligada à organização de jantares de apoio e desagravo e de outros eventos sociais e políticos no concelho.
E para espanto de todos, uma semana depois, a decisão da Sr.ª Dr.ª juíza foi condenar a arguida a pagar as custas, a indemnizar a dona do restaurante em 300€ (2) e a pagar uma multa de 15€ para remir uma pena de 75 dias, porque, na opinião da Sr.ª juíza, as testemunhas de defesa eram colegas e como tal pouco fiáveis, preferindo acreditar no porteiro e no amigo que nem sequer assistiram ao que se passou.
O texto da sentença, de que apresento alguns extractos, é de facto inacreditável para alguém que, como eu, tem uma formação científica. Mais do que inacreditável é ESCANDALOSO!
3. Alguns extractos da sentença
A arguida foi condenada porque na opinião da juíza ficou provado (transcrevem-se extractos da sentença):
“Em vez de picanha, o restaurante disponibilizou carne de rabada de boi, e em quantidades insuficientes, tendo em conta o número de pessoas.”
“Quando a arguida se servia de sobremesa, foi abordada por outro funcionário do restaurante, que a advertiu em tom brusco que não podia mexer naquelas sobremesas a não ser que pagasse pelas mesmas.”
“Porque se sentia insatisfeita e desagradada com o serviço prestado, a arguida pediu aos funcionários o livro de reclamações.”
“Ao que o funcionário e a pessoa a quem o estabelecimento fica confiado na ausência da dona, entretanto chamado ao local, tentaram resolver a situação e conversar com a arguida, nomeadamente para a dissuadir de apresentar a reclamação.”
“Nesse momento, a arguida disse repetidamente em tom exaltado e de modo audível para as demais pessoas que se encontravam no restaurante àquela hora nomeadamente que a “comida não prestara” e que “nunca tinha sido tão mal servida”…”
“Apercebendo-se do episódio os demais clientes do estabelecimento começaram a olhar para a mesa da arguida para ver o que se passava, enquanto outros se dirigiam à caixa de pagamento para abandonar o local.”
“ A arguida sabia que a sua conduta era susceptível de pôr em causa o prestígio, crédito e confiança do restaurante.”
“Sabia que o seu comportamento era censurável e punido por lei e, mesmo assim não se inibiu de o adoptar.”
“À arguida foi entregue o livro das reclamações, na presença da PSP, no qual ela registou a queixa, cerca de 1h30m depois do descrito supra.”
“A sócia do restaurante deu instruções aos seus funcionários para só entregarem o livro das reclamações a quem se identificar.”
(2) O valor de 300€ que teria sido prejudicada nessa quantia. Se tivesse dito outro valor, outro valor seria. Sem mais!
Nota: de notar que nunca foi pedida a identificação da pessoa que reclamou, nem foi usado esse pretexto pelos funcionários do restaurante para recusar o livro, e como é óbvio a pessoa que reclama, no acto de reclamar tem de se identificar.
Mais uns extractos da sentença para compreendermos porque foi condenada a pessoa que fez uma reclamação no restaurante:
“Os depoimentos destas duas testemunhas – o porteiro do restaurante e o amigo da dona que toma conta do negócio – afiguraram-se-nos sérios, isentos, coerentes entre si”… “ De resto, e para a credibilidade acrescida que se conferiu a estes depoimentos relevou, não apenas a postura honesta por aqueles assumida em julgamento, mas também o facto de ambas as testemunhas não terem tido pejo em admitir que o seu objectivo foi justamente a de tentar dissuadir a arguida de usar o livro de reclamações, resolvendo o problema de outra forma, não obstante soubessem ser o seu direito registar a queixa quanto aos serviços prestados.”
“Em contraposição a versão da arguida e das testemunhas de defesa afigurou-se-nos pouco credível, isto é, de acordo com a reacção expectável por parte do cidadão comum quando confrontado com uma situação semelhante: é que não é razoável supor que o homem médio se mantivesse calmamente sentado e aguardasse serenamente 1 hora e 30 minutos pelo livro de reclamações. Mas não só; foi igualmente reveladora a postura da arguida na defesa intransigente desta versão, no sentido de não reconhecer, em absoluto, quaisquer possibilidade de exaltação e nervosismo.”
“Por outro lado os depoimentos das testemunhas de defesa foram claramente parciais avançando uma versão em total alinhamento com a da arguida, numa tentativa de fazer vingar a versão desta.
Tais depoimentos, pelo seu conteúdo, pela postura dos seus autores revelada em julgamento, pelo confronto com as regras da experiência comum, mostraram-se pouco verosímeis, para além de pouco espontâneos, por comparação com os das testemunhas de acusação.”
4. O que foi de facto provado em tribunal
O que ficou provado, mesmo em tribunal, e que a própria sentença reconhece, foram todos os pontos que constam da reclamação:
• um mau serviço do restaurante, que não serviu o que se prometera,
• má-criação do funcionário, falando com a arguida em tom brusco,
• a intenção da arguida de reclamar, porque sentiu que um serviço que lhe prestavam no restaurante era mau,
• a recusa do livro de reclamações durante hora e meia,
• a necessidade chamar a polícia para o livro ser apresentado,
• a reclamação foi feita finalmente, na presença da PSP.
5. O que não foi de facto provado em tribunal
Quanto aos acontecimentos, desde que o livro é pedido até a reclamação ser assinada na presença da PSP, há duas versões completamente diferentes: a dos funcionários do restaurante, que curiosamente não assistiram a grande parte dos acontecimentos, e a de todo o grupo que nesse dia jantou no restaurante. Quando muito a juíza poderia ter concluído que não existiam evidências para decidir.
Apesar disso, a reclamante é transformada em arguida, em ré e é condenada a pagar custas, indemnização e a remir pena de prisão de 75 dias em dinheiro.
6. Conclusões jurídicas porque outras conclusões são óbvias
De acordo com o texto da própria sentença, que transcrevemos acima em parte, a arguida foi condenada por se ter provado que se exaltou, prejudicando o negócio do restaurante, porque na opinião da juíza os depoimentos da acusação são credíveis enquanto os da defesa não. E os testemunhos da defesa não são credíveis porque de acordo com o senso comum não é credível que em face do que se passou – a recusa do livro durante hora e meia – a arguida não se tivesse exaltado!
Poder-se-ia portanto concluir que todos os restaurantes deveriam recusar sempre o livro de reclamações. Perante essa recusa
• ou os clientes desistiam, e não haveria reclamação,
• ou se exaltavam e teriam de indemnizar o restaurante,
• ou se tivessem paciência para esperar, chamassem a polícia para conseguir o livro e
reclamassem sem se exaltar, não seria crível que se não tivessem exaltado e teriam de
indemnizar o restaurante da mesma forma!
Desafio quem quer que seja a encontrar alguma falha neste raciocínio!
7. O que aconteceu entretanto à reclamação?
O que entretanto aconteceu à reclamação é também um dado muito importante para percebermos as tramóias por detrás de tudo isto.
• a reclamação foi para a Câmara Municipal que curiosamente lhe não deu qualquer seguimento até Julho de 2007, ou seja cerca de dois anos depois (3);
• não tendo recebido até essa data qualquer informação, vinda de qualquer instituição, a reclamante procurou saber na Câmara Municipal afinal o que se passara com a reclamação.
Perante a insistência foi finalmente informada de que a reclamação estava ‘esquecida’ numa gaveta do serviço encarregado das reclamações, tendo a responsável por esse serviço afirmado que isso se deveria a ter sido recebida por uma funcionária sem experiência, que não soubera por isso como actuar;
• a pessoa que reclamara foi questionada se pretendia manter a reclamação e se tinha
testemunhas, e tendo respondido afirmativamente, foi-lhe prometido que a reclamação iria agora seguir os procedimentos adequados;
• várias testemunhas da reclamante foram chamadas à CMM
• em Dezembro de 2007 contactou de novo a CMM e a resposta foi que essa reclamação estava AINDA para ser avaliada pela vereadora do pelouro…Dois anos e meio depois dos
acontecimentos!
8. Perguntas finais
Como é possível isto acontecer?
Como é possível acontecer impunemente?
O que é necessário fazer para deixar de acontecer?
Afinal para que servem as reclamações, se ficam nas mãos de gente amarrada a todo o tipo de
conluios? Quem fiscaliza?
Se perante uma simples reclamação actuam com este desplante, como será noutros casos?
Já agora, pois estão com certeza curiosos, o restaurante chama-se Mocho Sentado.
Renato Roque
(3) Por informação da ASAE, as reclamações de restaurantes seguem para as CMs que as analisam e as devem
fazer seguir para a ASAE que contactam as pessoas envolvidas para decidir. Na opinião da ASAE o simples
facto de recusar ou de dificultar a entrega do livro de reclamações, de acordo com a lei, deve dar lugar a sanção."
Etiquetas: País real
<< Home