Nuno Crato: A palavra ensinar foi banida do vocabulário do Ministério da Educação
Não poderia deixar de felicitar aqui Nuno Crato pelo prémio com que foi distinguido. Já por diversas vezes manifestei neste blogue a minha concordância e admiração não só com as posições que o Presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática tem defendido na área do ensino em geral e da matemática em particular, mas também pela sua incansável actividade de divulgador da ciência. Não foi portanto uma grande surpresa para mim, que tenha sido agraciado pelo European Science Awards na área da comunicação da ciência, atribuídos pela Comissão Europeia, em Bruxelas. Na categoria de Melhor Comunicador do Ano. É a primeira vez que um português é distinguido neste galardão, criado em 2004 (então chamado Prémio Descartes para a Comunicação da Ciência), edição em que venceu o famoso naturalista e apresentador britânico de documentários David Attenborough. (ler mais aqui)
O que é de lamentar é que o nome de Nuno Crato seja indevidamente aproveitado por aqueles que defendem exactamente o oposto que ele defende. Fernando Madrinha, um dos mais acérrimos carrascos dos professores do ensino básico e secundário, cola-se despudoradamente ao sucesso de Nuno Crato (Expresso de 15/03/2008), quando é sabido que este matemático tem sido um dos mais notáveis críticos da política educativa deste Governo.
Veja-se, por exemplo o que pensa Nuno Crato sobre esta política, numa entrevista que deu ao jornal Público em 18 de Junho de 2006.
"A palavra ensinar foi banida do vocabulário do Ministério da Educação
Público - Estamos a chegar ao fim de um ano lectivo particularmente agitado: começou com a polémica em torno das aulas de substituição e acaba com outra em torno da revisão do estatuto da carreira docente. Foi essencialmente só ruído ou as coisas estão a mudar?
Nuno Crato - Precisamos de deixar a poeira pousar para ver o que se passa. Mas julgo que um dos principais perigos deste ano é o de sair-se dele com uma guerra contra os professores. Isso é o pior que poderia existir neste momento. E é uma guerra que não tem sentido. Se alguém pretende culpar os professores sobre o que aconteceu nos últimos anos está a falhar o alvo. Porque o responsável do que se passou nos últimos 20 anos é essencialmente o Ministério da Educação. O ministério mudou muito, os ministros mudaram, mas há um grupo, uma "nomenklatura", feita de técnicos superiores do ministério e de teóricos da educação, que forjaram uma aliança ao longo de décadas, que é de facto quem manda na educação do país. Estou absolutamente convencido disso.
P - Os professores estão então isentos de culpas?
R - Se há culpas dos professores, essas também se devem ao Ministério. Por exemplo, se alguns professores não têm a melhor preparação científica isso deve-se ao Ministério da Educação que durante décadas se recusou a fazer aquilo que era evidentemente necessário, que era um exame de entrada na profissão.
P- Que está agora previsto no novo estatuto da carreira docente
R- Pois está e esperemos que funcione bem. Mas para que isso aconteça terá que ser um exame sobre os conhecimentos dos professores e não sobre "pedagogices". E conhecimentos não só numa área especifica, sobretudo quando se fala dos dois primeiros ciclos. Qualquer professor deve ter uma ideia de quem foi Almeida Garrett, seja docente de História, de Português ou de Matemática. Qualquer professor deve ter uma ideia do que é a lei da queda dos graves. Os professores devem ter esse tipo de cultura geral, digamos assim. Não podem dar erros graves de português, não podem dar erros elementares de Matemática. E depois, na área especifica, devem saber o suficiente para estar perfeitamente à vontade naquilo que vão ensinar. Infelizmente não é isso que se passa com alguns professores. Mas nós temos os docentes que o Ministério quis.
P - Os professores têm razão em sentirem-se zangados com esta ministra?
R- Têm razões para estarem zangados com todos os ministros, embora com a actual titular as questões tenham sido mais amplificadas do que aquilo que mereceriam ser. Pode ser que alguns tenham abdicado de ensinar, mas foi o Ministério, através de uma série de orientações e contra-orientações, quem destruiu as escolas. Este ano, só há cerca de mês e meio é que estas receberam indicações sobre os exames e lhes foram enviadas as provas tipo. Até lá, nem os professores, nem as famílias, nem os alunos não sabiam coisas essenciais sobre os exames. Como é que se pode trabalhar assim? Como é que se organiza um ano lectivo nestas condições?
P - As medidas que foram sendo anunciadas este ano lectivo poderão trazer mais qualidade ao ensino?
R- Penso que, em geral, vão na direcção certa e vão ao encontro de coisas que durante muito tempo praticamente só a Sociedade Portuguesa de Matemática defendeu. Por exemplo, a necessidade de exames para professores; de um número mínimo de horas de Matemática no primeiro ciclo; a insistência nos conteúdos curriculares; a existência de exames. Foram medidas preconizadas pela Sociedade Portuguesa de Matemática e muito criticadas por parte de uma série de sectores, nomeadamente por parte dessa nomenkclatura que dirige a educação em Portugal e contra a qual muitas vezes os ministros nada podem. Conta-se aquela história sobre de a Manuela Ferreira Leite [ministra da Educação entre 1993 e 1995 ] ter dito, batendo com o pé no chão, no seu gabinete: "Daqui para baixo [do 13º andar para baixo] não mando nada".
Todos os que passaram pelo Ministério da Educação se queixam de que pouco puderam fazer, que havia aquela máquina gigantesca que ia tomando conta das coisas. E é disso que tenho temos muito receio. De que também estas novas medidas , apesar de serem bem intencionadas, venham a ser, na sua concretização, completamente deturpadas. Por exemplo, a obrigatoriedade dos exames para professores pode ser completamente deturpada.
P - Tudo depende do tipo de exame e de quem o faz?
R - Pois é. E o mesmo no que respeita ao novo estatuto da carreira docente. Toda a gente anda a discutir se os professores devem ser avaliados, se não devem; se os pais devem avaliar, se não. Como se, a pretexto da avaliação, se estivesse a fazer uma guerra contra ou a favor dos professores. Ora, a avaliação é necessária. Mas quem escreveu o novo estatuto da carreira docente conseguiu introduzir um artigo que liquida toda a capacidade de avaliação dos professores. Trata-se do artigo sobre o conteúdo funcional da docência [36º-2], aquele que estipula quais são as funções dos professores. E as funções dos professores deixaram de ser ensinar. Aparece ali listado um numero inacreditável delas: os professores aparecem transformados em animadores culturais, em mediadores entre a família e a escola, etc; e a sua função primeira não é ensinar, mas sim criar "situações de aprendizagem". Aliás, curiosamente, a palavra "ensinar" não aparece uma única vez no documento, que tem 55 páginas. Não é isto sintomático?
Na verdade, liquidou-se de vez qualquer capacidade de avaliação dos professores. Vai-se avaliar o quê? Se o professor criou situações de aprendizagem? Se o professor se relaciona bem com as famílias? Se relaciona bem com colegas? É isso que se vaimos avaliar?
P - Faz-se por um lado, desfaz-se por outro. É obra da tal nomenkclatura que referiu?
R - Não tenho dúvidas nenhuma disso. O que há de novo é que esta "nomenklatura" deixou cair da sua linguagem os aspectos mais dogmáticos, mais visíveis, e passou a actuar de forma a dizer que sim, que está bem, sigamos o que a ministra diz, mas na prática faz-se o contrário. No novo estatuto vacinou-se tudo o que ali está escrito contra qualquer efeito que possa vir a ter. Não se pode fazer avaliação de professores e ser-se objectivo, sem ser claro sobre quais são as funções do professor. E as funções do professor são ensinar. O que temos de avaliar é essa capacidade do professor de ensinar. Mas esta palavra "ensinar" parece que foi banida do vocabulário.
E esta situação é facilitada pela inexistência de avaliação externa. Os momentos de avaliação externa são quase nulos. Felizmente este último ano, e pela primeira vez há muito tempo já, houve um avaliação externa nacional no 9 º ano. A Matemática e a Português.
É uma coisa muito importante, mas trata-se de uma gota de água no oceano. São só duas disciplinas e é só no 9º ano de escolaridade. Ou seja, continua a não existir uma avaliação externa em todos os outros graus intermédios. O que levante esta outra questão: como é que vamos então avaliar os professores se não temos essa avaliação externa sobre o próprio resultado do seu trabalho, que é o conhecimento dos alunos?
P - É esse o único parâmetro?
R - Penso que sim, que é praticamente o único. O que é que o professor conseguiu acrescentar aos alunos. Isso é o que há de mais avaliável. Mas quando se trata de um professor do primeiro ou do segundo ciclo, onde não existem exames, como é que se vai fazer essa avaliação? Tem que haver dados objectivos. Tudo está dependente disso, dessa baliza externa, e sem ela a própria possibilidade da avaliação pode ficar completamente liquidada.
P - O que está a dizer é que apesar de toda a agitação deste ano nada de essencial mudou ainda
R - Mudou o discurso e há uma vontade expressa de mudar da parte de muita gente, nomeadamente da parte da ministra da Educação. Mas é preciso que se perceba que é preciso mudar também os fundamentos teóricos. E isso ainda não aconteceu. Por exemplo, o novo plano nacional da Matemática refere como trave mestra o "Currículo Nacional do Ensino Básico: Competências Essenciais", um documento implementado em 2001 pela anterior equipa do Ministério da Educação, dirigida por Ana Benavente [secretária de Estado da Educação entre 1995 e 2001 ], onde se consubstancia precisamente toda a doutrina que liquidou a educação em Portugal.
Na Matemática toda esta doutrina tem de facto um momento máximo e esse momento é o da implementação daquele documento, que coloca em oposição as aprendizagens e a criatividade; o conhecimento e a competência matemática; a memorização e a capacidade de resolução problemas. É um documento que defende que tudo vem da motivação e da resolução de problemas não rotineiros. Há um problema essencial desta ideologia, que é o de achar que há só um caminho para as coisas. O documento de 2001 não devia servir de base para nada, mas no novo plano temo-lo de novo pela frente.
P - O que é feito então da vontade de mudar?
R - Ela existe e algo se passou também na opinião pública em geral, que está mais atenta e quer essa mudança. As posições da ministra reflectem essa alteração. Já não estamos como estávamos há cinco anos, mas não sei o que vai resultar daqui. Talvez se passe como naquele livro do Lénine, que se dê um passo em frente e dois para trás. Ou então dois em frente e um para trás. Não sei. O que sei, porque a conheço desde há bastante anos, é que esta "nomenklatura" tem uma capacidade inacreditável para transformar em zero seja que medidas forem.
P - Essa ideologia de que falou foi algo que nos aconteceu só a nós?
R - Aconteceu em muitos outros países. Aconteceu nos Estados Unidos e muito mais cedo do que cá. Mas os EUA têm uma maneira de gerir a educação muito mais descentralizada, e por isso enquanto esta ia sendo destruída num lado, ia sendo construída noutro. Muitas vezes dentro da mesma localidade e em escolas dirigidas pelo mesmo conselho de educação. Ou seja, no mesmo sítio e dentro das directivas de um mesmo conselho, existem escolas que têm perspectivas assumidamente diferentes e as pessoas podem escolher aquela que mais gostam. Há essa possibilidade de escolher e não estou a falar de escolas particulares. Aqui não, é tudo monolítico.
P - Defende então que a autonomia das escolas é essencial?
R - Sem dúvida. Mas neste momento é pura conversa por cá. As escolas não têm autonomia para nada. Estou-me a lembrar do que se passou há uns poucos de anos, com a polémica das aulas passarem a ser de 90 minutos ou continuarem nos 50. É inacreditável o envolvimento total do Ministério da Educação nisto. Como se para todas as escolas do país, para todas as crianças, existisse uma e apenas uma medida certa. Porque é que não se deixou as escolas escolherem? Que uma tivesse aulas de 50 minutos e outra de 90? Mas não. O Ministério da Educação tenta sempre controlar todo o processo até ao mais ínfimo pormenor, quando o que devia fazer, e quase só, era controlar os resultados.
Na minha opinião, o Ministério da Educação devia ser praticamente só o ministério dos exames, um instrumento sobretudo avaliador dos resultados, dando liberdade às pessoas e às escolas paras seguirem os seus caminhos. Claro que se houvesse liberdade educativa, como existe noutros países, rapidamente as escolas que funcionam pior seriam abandonadas e teriam que reformular a sua política sob pena de desaparecerem. Com reflexo nos próprios professores que funcionam pior.
P - Os pais devem avaliar os professores? Pensa que isso é fazível?
R - Não. Com o país que temos e da maneira como as coisas estão organizadas, não vejo como. Mas os pais deviam poder avaliar, escolhendo a escola. Isso sim."
Tenho lido opiniões concordantes com esta, vinda de inúmeros docentes do ensino superior. Por outro lado, tenho reparado que muitos dos opinadores públicos, que manifestam uma posição contrária a esta, não são nem nunca foram professores! Daí talvez a explicação. Não percebem e estão intoxicados pela verborreia governativa. Estão por fora do assunto. Não fazem ideia que a razão de ser dum professor é a missão quase mística de ensinar, de transmitir conhecimentos e de contribuir para a formação de seres humanos mais cultos, o que não é mensurável. Avaliar professores tem de ser muito diferente de aferir as capacidades dum empregado que faz sapatos, ou dum gestor de topo, ou de qualquer funcionário público.
É compreensível que muitos docentes do ensino superior estejam preocupados com o que se passa no ensino básico e secundário, pois os alunos que nos chegam às mãos, vêem daí. A bandalheira já não é de agora, vem de vários ministérios atrás, mas não é culpa dos professores. E o pior é que as recentes medidas parecem agravar ainda mais a situação.
Veja-se também o que diz Carlos Fiolhais: " [...] Não discuto a necessidade da avaliação porque ela praticamente não existe apesar de ser indispensável a todos os níveis para a melhoria da qualidade do ensino: os professores, as escolas, os governos têm de ser avaliados. E, ao contrário de outras vozes, acho que uma avaliação deficiente é preferível a avaliação nenhuma. O problema é que o esquema que está previsto - e que por várias razões provoca a repulsa dos professores e de outros cidadãos - nem sequer é uma má avaliação. Não é avaliação nenhuma. Não passa de uma burocracia confusa e mal-pensada, feita à pressa e para ser feita à pressa. Não tem nada a ver com a escolha e recompensa dos melhores [...]"
Etiquetas: Ensino
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